Nosso amigo foi morto por proteger a floresta

Tainaky, Paulo Paulino e Olimpio Guajajara destroem um acampamento de madeireiros ilegais em seu território em uma operação, em 2019. © Sarah Shenker/Survival

“Eles estão nos observando”, sussurraram os Guardiões da Amazônia enquanto andávamos quilômetros no escuro, adentrando ainda mais na floresta e em direção a um ponto de extração ilegal de madeira que estava na lista para ser interceptado. “Mas estamos observando eles e essa é a nossa floresta. Nós conhecemos ela bem. Nós vamos pegar eles.”

Eu estava em uma operação com os Guardiões da Amazônia, indígenas do povo Guajajara que possuem um objetivo claro: proteger suas terras para suas famílias e seus vizinhos Awá isolados – o povo mais ameaçado do planeta – com quem compartilham seu território. Fui convidada a me juntar a eles como parte do meu trabalho para a Survival International, o movimento global pelos povos indígenas, que tem apoia o trabalho dos Guardiões e ajuda a amplificar suas vozes ao nível internacional.

A ira e a urgência são evidentes em cada movimento dos Guardiões. Por que esperar até de manhã se os madeireiros – abertamente violentos e gananciosos por madeiras valiosas – estão na floresta agora? Então saímos à noite, com os bem olhos abertos, ajustados à escuridão e à luz fraca e intermitente de algumas lanternas. As lanternas estavam cobertas por pedaços de panos e apontadas para os nossos pés. Mais luz do que isso e correríamos o risco de sermos vistos. Os madeireiros são agressivos e estão armados.

Na época desta visita, em abril de 2019, os madeireiros já haviam assassinado três Guardiões. Em novembro do mesmo ano, recebi a notícia de que nosso amigo Paulo Paulino Guajajara havia sido morto a tiros e que nosso outro amigo, Tainaky Tenetehar, havia sido gravemente ferido, escapando por pouco. Os madeireiros os cercaram em uma emboscada enquanto estavam na floresta caçando.

Paulo Paulino “Lobo Mau” Guajajara, Guardião da Amazônia, em uma expedição para combater a invasão ilegal de sua floresta. © Sarah Shenker/Survival International

A touca que Paulo usa nesta foto era minha. Fizemos dois buracos para os olhos e, quando passávamos por áreas particularmente perigosas, ele a usava para cobrir o rosto e não ser reconhecido pelos madeireiros. Ele disse que essa touca poderia salvar sua vida, pois, sem ela, ele poderia ser alvo de ataques a qualquer momento. 

Paulo perdeu sua vida por tentar salvar a floresta de seu povo, a Terra Indígena Arariboia, na Amazônia maranhense. Essa floresta está sendo destruída a um ritmo alarmante e os Awá isolados correm o risco de serem aniquilados. As palavras racistas e as propostas genocidas do presidente Bolsonaro para roubar as terras indígenas estão incentivando madeireiros a operar livremente, confiantes de que vão fazer dinheiro rápido sem serem presos. O número de invasões a territórios indígenas e ataques a comunidades disparou desde que Bolsonaro tomou posse.

“O presidente deixou claro que terra indígena não vai demarcar nem um milímetro mais. Eles querem matar todos para ficar com a nossa terra”, disse Tainaky Tenetehar. Em nossa patrulha, vimos inúmeras partes de floresta recém desmatada, feridas abertas no meio do verde exuberante. Vimos dezenas de árvores derrubadas pelos invasores, caídas como cadáveres nas laterais das trilhas dos madeireiros, prontas para serem transportadas para fora do território indígena e vendidas no mercado negro.

Paulo estava conosco nesse dia e ficou indignado com o que vimos: “Fico com tanta raiva de ver isso! Essas pessoas pensam que podem vir aqui, entrar na nossa casa e na nossa floresta? Não. Não vamos permitir. Nós não invadimos as casas deles e roubamos eles, não é? Meu sangue está fervendo. Estou com muita raiva. "

Paulo estava usando a touca que eu lhe dei no dia em que foi morto, mas desta vez ela não o protegeu. Paulino e Tainaky não imaginavam que poderiam ser alvos de uma emboscada enquanto caçavam.

Os Guardiões respeitam e protegem sua floresta como parte integrada de sua vida cotidiana, porque é ela que dá comida, abrigo, remédios – tudo de que precisam. Sem ela, eles não podem sobreviver. “Ninguém no mundo sabe andar na floresta mais do que nós, mais do que os indígenas. Conhecemos nossa floresta melhor do que ninguém. Nós vamos lutar até o fim ", disse Tainaky. “Não há outra opção.”

A Terra Indígena Arariboia na Amazônia, uma ilha de floresta cercada por áreas muito desmatadas. © Survival

Dê um zoom, observe a terra Arariboia em imagens de satélite e você ficará impressionado com o contraste das cores nas bordas. É uma ilha verde cercada por um mar de destruição. Isso não é uma surpresa: os povos indígenas cuidam de suas terras melhor do que ninguém. Eles assim fazem há gerações. Ao contrário de muitas outras sociedades, seu manejo da floresta não requer planejamento detalhado, projetos de um milhão de dólares, debates em fóruns internacionais ou o acordo climático de Paris. 

Montamos acampamento em um ponto onde dois caminhos que os madeireiros utilizavam se convergiam. Dormimos em volta de uma fogueira – chamas suficientes para cozinhar a única porção de carne restante, mas não o suficiente para ser vista por invasores à espreita. Ao amanhecer, continuamos, quilômetros adentro da floresta. Havia sinais constantes de intrusos. Estávamos chegando mais perto.

Uma consequência das ações do governo de Jair Bolsonaro é que há mais olhos na floresta: olhos daqueles que querem roubá-la, mas também daqueles que querem protegê-la. A situação está chamando muita atenção, e os incêndios fatais que devastaram amplas áreas de floresta também chamaram a atenção de milhões de pessoas em todo o mundo. Todos esses olhos estão provocando brigas, estampando manchetes e construindo resistência. Nós podemos ser aliados nessa resistência, mas nunca saberemos verdadeiramente o que pessoas como os Guardiões da Amazônia enfrentam diariamente. Nunca saberei verdadeiramente o que Paulo passou. 

Horas depois, encontramos o acampamento dos madeireiros. Nos aproximamos com cautela, andando um atrás do outro, o mais silenciosamente possível. Mas ninguém estava lá. Os madeireiros fugiram às pressas, deixando para trás algumas roupas, utensílios de cozinha, uma abóbora e meia dúzia de ovos. Restos de sua base a partir da qual cometem seus crimes. Os Guardiões foram rápidos em colocar fogo no acampamento para queimá-lo completamente.

Os invasores foram provavelmente informados de nossa presença por um de seus espiões que vimos alguns dias antes. Cientes das vitoriosas operações dos Guardiões que estão conseguindo expulsar os madeireiros para fora do seu território, eles preferem fugir e abandonar “suas” valiosas madeiras a cruzar caminho com os defensores da floresta.

Em todo o mundo, as pessoas estão se unindo aos povos indígenas do Brasil para que #PareOGenocídioIndígena. Durante o primeiro mês da presidência de Bolsonaro, milhares de indígenas e não-indígenas participaram do maior protesto internacional de todos os tempos pelos direitos indígenas. A resistência tem se fortalecido e conseguido anulando alguns dos planos genocidas de Bolsonaro

Portanto, para o futuro de Arariboia e de outras terras indígenas – os lugares com maior biodiversidade do planeta e fundamental para a vida de todos nós – vamos manter nossos olhos e ações na floresta e apoiar os olhos indígenas. Nós honramos a vida de Paulo e de outros como ele; nunca entenderemos o quanto realmente devemos a eles. Eles estão na linha de frente, dia e noite, dessa luta pelos povos indígenas, pela natureza e por toda a humanidade.

 

Survival International, o movimento global pelos povos indígenas, tem lutado junto dos povos indígenas – incluindo os Awá – desde 1969. Como parte da campanha global pelos proteção das terras dos povos indígenas isolados, a Survival está apoiando o trabalho dos Guardiões.

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