Anos Silenciosos

Karapiru Awá viu toda sua família ser massacrada pelos karai (não-indígenas). Ele escapou e viveu sozinho por 10 anos. Logo depois ele se reencontrou com seu filho, que também vivenciou o ataque. © F Watson/Survival

A história de fuga de Karapiru

Seu nome significa ‘Gavião’, em seu idioma. No entanto, mesmo com a perspicácia da visão que o apelido sugere, Karapiru não podia prever a tragédia que se abateu sobre o seu povo, os Awá. Ele nunca poderia ter imaginado o dia em que teria que fugir para salvar sua vida - com uma bala de espingarda ardendo em suas costas e com sua família sendo assassinada por pistoleiros - e nem que aquele seria apenas o primeiro dia de uma década de solidão.

A terra ancestral de Karapiru é no Maranhão, na floresta da Amazônia. Para os Awá, a terra tem apenas um nome: Harakwá, ou ‘o lugar que conhecemos’.

Hoje os Awá são cerca de 520 indivíduos. Eles vivem da caça, viajando através da floresta, com arcos de dois metros de comprimento, recolhendo tudo aquilo que a floresta produz: castanha de babaçu, açaí e mel. Alguns alimentos são considerados como tendo propriedades especiais – outros, como os urubus, morcegos e a preguiça de três dedos, são proibidos. Os Awá também viajam durante a noite, iluminando o caminho com tochas feitas de resina de árvore.

Karapiru, um homem Awá que sobreviveu ao massacre de sua família por homens armados. © Fiona Watson/Survival

Eles cuidam dos animais órfãos como se fossem de estimação: compartilham suas redes com quatis e dividem mangas com periquitos verdes. As mulheres Awá muitas vezes até amamentam macacos e pequenos suínos.

O ano para os Awá é dividido em ‘sol’ e ‘chuva’. As chuvas são controlados por seres celestiais chamados ‘maíra’, que supervisionam vastos reservatórios no céu. Quando a lua está cheia, os cabelos escuros dos homens Awá são salpicados com o branco do urubu-rei, uma comunhão com os espíritos através de um transe induzido pela dança, durante um ritual sagrado que dura até o amanhecer.

Homens Awá dançando © Toby Nicholas/Survival

Durante séculos, seu modo de vida possui uma simbiose pacífica com a floresta. Porém, nas recentes décadas, eles têm testemunhado a destruição de sua terra e o assassinato de indígenas do seu povo pelas mãos dos ‘karaí’, os ‘não-indígenas’. Hoje, eles não são apenas um dos últimos povos caçadores-coletores do Brasil, eles são também um dos povos indígenas mais ameaçados do planeta.

A angustiante história de Karapiru começou, de fato, com uma descoberta feita no final da década de 60 por geólogos norte-americanos que estavam fazendo um levantamento aéreo dos recursos minerais da região. O piloto que transportava o grupo decidiu pousar em uma cúpula de árvores no alto das montanhas dos Carajás para reabastecer o helicóptero.

Ali, um geólogo teria notado algumas pedras acinzentadas no chão, e logo percebeu que se tratavam de minério de ferro. De fato, o solo em que estavam pisando continha o que uma revista geológica mais tarde definiu como ‘uma espessa camada de jaspilitos e lentes de hematita dura’. Em termos gerais, eles tinham aterrissado na jazida de ferro mais rica do planeta.

A descoberta rapidamente deu origem ao Projeto Grande Carajás, um esquema agro-industrial financiado pelo EUA, Japão, o Banco Mundial e o então EEC. A área consistia de uma represa e fundições de alumínio e, posteriormente, foram incorporadaos campos de carvão e fazendas de gado. Estradas foram construídas para o transporte de trabalhadores e dos minerais, o que provocou a destruição de grande parte da floresta. Uma ferrovia também foi implantada, com cerca de 900 km de extensão, que corta o território dos Awá e chega ao litoral.

O projeto industrial criou um abismo que arrancou o chão da floresta. Um abismo tão vasto que poderia ser visto do espaço e, com o tempo, se tornou a maior mina a céu aberto do mundo.

A mina e ferrovia de Carajás marcaram o início da migração para o território Awá. © Peter Frey/Survival

Apesar dos investidores terem pedido ao governo brasileiro que garantisse o mapeamento e a proteção do território indígena, em troca de um empréstimo de um bilhão de dólares, o Projeto Grande Carajás foi devastador para o meio ambiente da região e para os povos indígenas.

Mas a chance de se adquirir fortuna a partir da exploração da floresta atraiu uma enxurrada de fazendeiros, exploradores e madeireiros para a região. Escavadeiras enormes começaram a arrancar a terra, rasgando as camadas de solo e rocha para chegar até a bauxita, o minério de ferro e o manganês. Rios foram contaminados, antigas árvores cortadas e queimadas. O preto das cinzas de carvão substituiu o verde profundo da folhagem da floresta: Harakwá tornou-se uma poluída, e assustadora, visão do inferno.

Para os garimpeiros, os Awá não era nada mais do que um obstáculo para chegar até o tesouro, um incômodo que precisava ser derrubado juntamente com as árvores. Os indígenas estava entre eles e os dólares que eles sabiam que iam conseguir com as rochas.

Então, a matança começou.

Vários Awá morreram depois de comer farinha misturada com veneno de formigas, um ‘presente’ de um fazendeiro local. Outros, como Karapiru, foram baleados – em casa, na frente de suas famílias.

Karapiru chegou a acreditar que ele era o único membro de sua família que sobreviveu ao massacre. Os assassinaos mataram sua esposa, filho, filha, mãe, irmãos e irmãs. Outro filho foi ferido e capturado.

Severamente traumatizado, Karapiru fugiu pela floresta, com uma bala alojada nas costas. ‘Não tinha como curar a ferida. Eu não pude colocar qualquer medicamento nas minhas costas, e sofri muito’, disse ele para Fiona Watson, da Survival International. ‘A bala estava quente nas minhas costas, sangrando. Eu não sei como não ficou cheia de insetos. Mas eu consegui escapar dos brancos.’

Os próximos 10 anos Karapiru seguiria em fuga. Ele caminhou por quase 650 quilômetros, atravessando colinas e planícies do Maranhão, atravessando dunas e grandes rios que desaguam no Atlântico.

Ele estava apavorado, com fome e sozinho. ‘Foi muito difícil’, ele disse. ‘Eu não tinha família para me ajudar, e ninguém para conversar’.

Ele sobreviveu comendo mel e pequenos pássaros como pombas e periquitos. À noite, quando os macacos bugios faziam barulho nas copas das árvores, ele ia e dormia no alto dos grandes ramos de árvores de copaíba, entre as orquídeas e trepadeiras. E quando a dor e a solidão tornava-se quase insustentável – ‘às vezes eu não gosto de lembrar tudo o que aconteceu comigo’ – ele falava baixinho consigo mesmo, ou sussurrava enquanto caminhava.

Mais de uma década após ter testemunhado o assassinato de sua família, Karapiru foi visto por um fazendeiro na periferia de uma cidade da Bahia. Ele estava andando por uma parte queimada da floresta, carregando um facão, algumas flechas, um recipiente com água e um pedaço de porco do mato defumado.

Eles se cumprimentaram:

Karapiru seguiu o agricultor até a aldeia, onde encontrou abrigo com um homem, em troca de cortar madeira. A notícia de que um indígena solitário e ‘desconhecido’ – que falava uma língua que ninguém mais podia entender – surgiu da floresta, logo se espalhou.

Ele era um homem que tinha passado dez anos ‘fugindo de tudo’, menos de sua tristeza. ‘Foi muito triste’, contou. Mas, assim como ‘Gavião’ não poderia ter previsto seus longos anos de sofrimento, ele também não poderia prever a alegria que estava prestes a receber.

Leia a segunda parte da história de vida de Karapiru→

Se você quiser ajudar a lutar contra as atrocidades como as que marcaram a vida de Karapiru, junte-se à campanha Pare o Genocídio

Por Joanna Eede

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